quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Namorado: Ter ou nao ter, é uma questão (Carlos Drummond de Andrade)

Quem nao tem namorado é alguém que tirou férias nao remuneradas de si
mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado
de verdade é muito raro. Necessita de adivinhaçao, de pele, de saliva,
lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.

Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixao é fácil.
Mas namorado, mesmo, é muito difícil.

Namorado nao precisa ser o mais bonito, mas aquele a quem se quer
proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase
desmaia pedindo proteçao. A proteçao dele nao precisa ser parruda,
decidida, ou bandoleira: basta um olhar de compreensao ou mesmo de
afliçao.

Quem nao tem namorado nao é quem nao tem um amor: é quem nao sabe o
gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um
envolvimento e dois amantes, mesmo assim pode nao ter namorado.

Nao tem namorado quem nao sabe o gosto da chuva, cinema sessao das duas,
medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Nao tem
namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar
sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria. Nao tem namorado quem faz
pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a
felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.

Nao tem namorado quem nao sabe o valor de maos dadas; de carinho
escondido na hora que passa o filme; de flor catada no muro e entregue
de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico
Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre a
meia rasgada; de ânsia de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô,
bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.

Nao tem namorado quem nao gosta de dormir agarrado, fazer sesta
abraçado, fazer compra junto. Nao tem namorado quem nao gosta de falar
do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro
dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Nao
tem namorado quem nao redescobre a criança própria e a do amado e sai
com ela para parques, fliperamas, beira d'água, show do Milton
Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical na Metro.

Nao tem namorado quem nao tem música secreta com ele, quem nao dedica
livros, quem nao recorta artigos, quem nao chateia com o fato de o seu
bem ser paquerado. Nao tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem
curtir; quem curte sem aprofundar. Nao tem namorado quem nunca sentiu o
gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou
meio-dia de sol em plena praia cheia de rivais. Nao tem namorado quem
ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de
obrigaçoes; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele. Nao tem
namorado quem confunde solidao com ficar sozinho. Nao tem namorado quem
nao fala sozinho, nao ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

Se você nao tem namorado porque nao descobriu que o amor é alegre e você
vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve,
aquela de chita e passeie de maos dadas com o ar.

Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricçoes
de esperança. De alma escovada e coraçao estouvado, saia do quintal de
si mesmo e descubra o próprio jardim.

Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua
janela.

Ponha intençoes de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de
fada. Ande como se o chao estivesse repleto de sons de flauta e do céu
descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante
a dizer frases sutis e palavras de galanteria.

Se você nao tem namorado é porque ainda nao enlouqueceu aquele pouquinho
necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.
Enlou-cresça.

A valsa

CASIMIRO DE ABREU

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco

Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas,..
- Eu vi!...
Calado,
Sozinho

Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues
Não mintas...
- Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

Todas as cartas de amor...

Fernando Pessoa
(Poesias de Álvaro de Campos)


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Para Viver Um Grande Amor

Vinicius de Moraes


Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.


terça-feira, 31 de agosto de 2010

História de um soneto - Artur azevedo

Antes de entrar definitivamente na vida prática, Ludgero Baptista, hoje um dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos - um, pelo menos - foi escrito com más tenções, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos, idade em que o homem não sabe medir bem as conseqüências dos seus atos... nem dos seus versos.

Havia naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetáculos.

Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a todos os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural filáucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas diligências, a fim de que os seus amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa situação mais positiva.

Para isso, recorreu à musa, que não abandona o poeta nessas emergências exóticas, e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os tempos, o privilégio de insultar as senhoras, sem que a moral pública os responsabilizasse por isso.

Eis aqui o soneto, que se intitulava:

SÚPLICA

Desde o dia feliz em que, pasmado,

Pela primeira vez te vi, senhora,

Um sentimento no meu peito mora

Feito de angústia e feito de pecado.


Não creias que ninguém houvesse amado

Tão loucamente como eu te amo agora,

Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora

Cavalheiresco tempo celebrado!


Para que finde o meu suplício airoso,

Ou me concede o mendigado beijo,

Este martírio transformado em gozo,,


Ou revela ao teu dono o meu desejo:

Talvez ele me faça venturoso,

Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!


Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L.B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos "novos" daquela época.

Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um número do periódico à "linda Laura", procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.

Não sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa à narrativa; creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.

O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis.

A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de réis, e aos trinta e sete principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir família.

Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no físico.

Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras.

Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.

Casaram-se.

Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas passado esse tempo, ele que estava às portas do semicentenário e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes...

Perdi o encanto - disse ele aos seus botões - tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegância que tinha na ocasião do nosso primeiro encontro... O nosso enlace não era, mas tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis...

Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse...

Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de sua mulher.

Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete.

- Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?

- Não sei - respondeu ela, e desatou a chorar.

- Por que choras?

- Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!...

- Abro-a eu! - disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos.

Ao ler o primeiro verso,

Desde o dia feliz em que, pasmado,

o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de "Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.

Ludgero deu uma gargalhada.

- De que te ris?... Que há que te faça rir? - perguntou Blandina.

- Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele, e sim meu!

- Teu?

- Sim! A coincidência é notável... Vais ver!

Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova Aurora, em que vinha estampada a sua "Súplica".

- Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!

- Tu fazias versos?

- Fazia-os, e ainda os farei, se quiser - tanto assim, que vou escrever outro soneto em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.

- Está dito!

A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.

No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:

- Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...

O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a:


RESPOSTA

Para satisfazer ao seu pedido,

Na parte da denúncia e não do beijo,

Revelei a meu dono o seu desejo.

Os versos entreguei a meu marido.


Este em vez de ficar enfurecido,

E de agarrar um ferro malfazejo,

Tomou a coisa á conta de gracejo,

E pôs-se a rir como um perdido!


Pois se e ele o autor do tal soneto!

O senhor copiou-o da Nova Aurora,

Estragando-lhe apenas um quarteto...


Ele, que a Musa já mandou embora,

Cede-lhe os versos (discrição prometo),

Mas não quer sociedade na senhora.


Blandina Baptista

Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.

Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente, encontrou o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...

O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.

Toc Toc Toc - Artur Azevedo

O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.

Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.

Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.

A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.

Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.

O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.

- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...

O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:

- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?

- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...

- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.

- Tu?... Apesar de...?

- Apesar de tudo!

- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!

- Por quê?

- Seria ridículo!

- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?

- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!

- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.

- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.

- Pois está dito!

No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:

"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."

A resposta não se fez esperar:

"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."

À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.

No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.

- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.

- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...

- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.

- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?

- Já lhe disse que sim.

- Bom; nesse caso, vou chamá-la.

E erguendo a voz:

- Idalina?

- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.

- Vem cá, minha filha!

Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!

Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.

- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.

- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...

- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.

Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:

- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?

- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!

Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.

O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:

- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...

terça-feira, 27 de maio de 2008

Cante lá, que eu canto cá - Patativa do Assaré




Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.

Pra gente cantá o sertão,
Precisa nele morá,
Tê armoço de fejão
E a janta de mucunzá,
Vivê pobre, sem dinhêro,
Socado dentro do mato,
De apragata currelepe,
Pisando inriba do estrepe,
Brocando a unha-de-gato.

Você é muito ditoso,
Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo,
Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade
Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera,
Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e de ôro,
Para a gente sertaneja
É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito,
Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada,
Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito,
Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito,
Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão
Suportando a privação
Com paciença de Jó,
Puxando o cabo da inxada,
Na quebrada e na chapada,
Moiadinho de suó.

Amigo, não tenha quêxa,
Veja que eu tenho razão
Em lhe dizê que não mêxa
Nas coisa do meu sertão.
Pois, se não sabe o colega
De quá manêra se pega
Num ferro pra trabaiá,
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.

Repare que a minha vida
É deferente da sua.
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente,
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obra da criação.
Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo,
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta,
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô.

Seu verso é uma mistura,
É um tá sarapaté,
Que quem tem pôca leitura
Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada,
Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão
E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive
Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio
Com todas coisa daqui:
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se bulí.
Se as vêz andando no vale
Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra
Assim que eu óio pra cima,
Vejo um divule de rima
Caindo inriba da terra.
Mas tudo é rima rastêra
De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra
E fulô de trapiá,
De canto de passarinho
E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem,
Pois você já tá ciente:
Nossa vida é deferente
E nosso verso também.

Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí.

Sua vida é divirtida
E a minha é grande pená.
Só numa parte de vida
Nóis dois samo bem iguá:
É no dereito sagrado,
Por Jesus abençoado
Pra consolá nosso pranto,
Conheço e não me confundo
Da coisa mió do mundo
Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem.

Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.

Patativa de Assaré/Antônio Gonçalves da Silva

EU, ETIQUETA - Carlos Drummond de Andrade





Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório

Um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

Que jamais pus na boca, nessa vida,

Em minha camiseta, a marca de cigarro

Que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produtos

Que nunca experimentei

Mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

De alguma coisa não provada

Por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

Minha gravata e cinto e escova e pente,

Meu copo, minha xícara,

Minha toalha de banho e sabonete,

Meu isso, meu aquilo.

Desde a cabeça ao bico dos sapatos,

São mensagens,

Letras falantes,

Gritos visuais,

Ordens de uso, abuso, reincidências.

Costume, hábito, permência,

Indispensabilidade,

E fazem de mim homem-anúncio itinerante,

Escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É duro andar na moda, ainda que a moda

Seja negar minha identidade,

Trocá-la por mil, açambarcando

Todas as marcas registradas,

Todos os logotipos do mercado.

Com que inocência demito-me de ser

Eu que antes era e me sabia

Tão diverso de outros, tão mim mesmo,

Ser pensante sentinte e solitário

Com outros seres diversos e conscientes

De sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio

Ora vulgar ora bizarro.

Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente.)

E nisto me comparo, tiro glória

De minha anulação.

Não sou - vê lá - anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

Para anunciar, para vender

Em bares festas praias pérgulas piscinas,

E bem à vista exibo esta etiqueta

Global no corpo que desiste

De ser veste e sandália de uma essência

Tão viva, independente,

Que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

Meu gosto e capacidade de escolher,

Minhas idiossincrasias tão pessoais,

Tão minhas que no rosto se espelhavam

E cada gesto, cada olhar

Cada vinco da roupa

Sou gravado de forma universal,

Saio da estamparia, não de casa,

Da vitrine me tiram, recolocam,

Objeto pulsante mas objeto

Que se oferece como signo dos outros

Objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

De ser não eu, mas artigo industrial, P

eço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa.

Eu sou a Coisa, coisamente.

O preconceito nosso de cada dia, Jaime Pinsky


Temos apenas opiniões bem definidas sobre as coisas. Preconceito é o outro quem tem... Mas, por falar nisso, já observou o leitor como temos o fácil hábito de generalizar (e prova disso é a generalização acima) sobre tudo e todos? Falamos sobre “as mulheres”, a partir de experiências pontuais; conhecemos “os políticos”, após acompanhar a carreira de dois ou três; sabemos tudo sobre os “militares” porque o síndico do nosso prédio é um sargento aposentado; discorremos sobre homossexuais (bando de sem-vergonhas), muçulmanos (gentinha atrasada), sogras (feliz foi Adão, que não tinha sogra nem caminhão), advogados (todos ladrões), professores (pobres coitados), palmeirenses (palmeirense é aquele que não tem classe para ser são-paulino nem coragem para ser corintiano), motoristas de caminhão (grossos), peões de obra (ignorantes), sócios do Paulistano (metidos a besta), dançarinos (veados), enfim, sobre tudo. Mas discorremos de maneira especial sobre raças e nacionalidades e, por extensão, sobre atributos inerentes a pessoas nascidas em determinados países. Afinal, todos sabemos (sabemos?) que os franceses não tomam banho; os mexicanos são preguiçosos; os suíços, pontuais; os italianos, ruidosos; os judeus, argentários; os árabes, desonestos; os japoneses, trabalhadores, e por aí afora. Sabemos também que cariocas são folgados; baianos, festeiros; nordestinos, miseráveis; mineiros, diplomatas, etc. Sabemos ainda que o negro não tem o mesmo potencial que o branco, a não ser em algumas atividades bem-definidas como o esporte, a música, a dança e algumas outras que exigem mais do corpo e menos da inteligência. Quando nos deparamos com um exceção admitimos que alguém possa ser limpo, apesar de francês; trabalhador, apesar de mexicano; discreto, apesar de italiano; honesto, apesar de árabe; desprendido do dinheiro, apesar de judeu; preguiçoso, apesar de japonês e também por aí afora. Mas admitimos com relutância e em caráter totalmente excepcional. O mecanismo funciona mais ou menos assim: estabelecemos uma expectativa de comportamento coletivo (nacional, regional, racial), mesmo sem conhecermos, pessoalmente, muitos ou mesmo nenhum membro do grupo sobre o qual pontificamos. Sabemos (sabemos?) que os mexicanos são preguiçosos porque eles aparecem sempre dormindo embaixo dos seus enormes chapelões enquanto os diligentes americanos cuidam do gado e matam bandidos nos faroestes. Para comprovar que os italianos são ruidosos achamos o bastante freqüentar uma cantina no Bixiga. Falamos sobre a inferioridade do negro a partir da observação empírica de sua condição socioeconômica. E achamos que as praias do Rio de Janeiro cheias durante os dias da semana são prova do caráter folgado do cidadão carioca.Não nos detemos em analisar a questão um pouco mais a fundo. Não nos interessa estudar o papel que a escravidão teve na formação histórica de nossos negros. Pouco atentamos para a realidade social do povo mexicano e de como ele aparece estereotipado no cinema hollywoodiano. Nada disso. O importante é reproduzir, de forma acrítica e boçal, os preconceitos que nos são passados por piadinhas, por tradição familiar, pela religião, pela necessidade de compensar nossa real inferioridade individual por uma pretensa superioridade coletiva que assumimos ao carimbar “o outro” com a marca de qualquer inferioridade. Temos pesos, medidas e até um vocabulário diferente para nos referirmos ao “nosso” e ao do “outro”, numa atitude que, mais do que autocondescendência, não passa de preconceito puro. Por exemplo, a nossa é religião, a do outro é seita; nós temos fervor religioso, eles são fanáticos; nós acreditamos em Deus (o nosso sempre em maiúscula), eles são fundamentalistas; nós temos hábitos, eles vícios; nós cometemos excessos compreensíveis, eles são um caso perdido; jogamos muito melhor, o adversário tem é sorte; e, finalmente, não temos preconceito, apenas opinião formada sobre as coisas. Ou deveríamos ser como esses intelectuais que para afirmar qualquer coisa acham necessário estudar e observar atentamente? Observar, estudar e agir respeitando as diferenças é o que se esperada de cidadãos que acreditam na democracia e, de fato lutam por um mundo mais justo. De nada adianta praticar nossa indignação moral diante da televisão, protestando contra limpezas raciais e discriminações pelo mundo afora, se não ficarmos atentos ao preconceito nosso de cada dia.

Histórias de camisinha, Moacyr Scliar




No século 16 uma epidemia de sífilis espalhou-se pela Europa. Não havia tratamento eficaz; usava-se o mercúrio, que matava o micróbio mas, sumamente tóxico, deixava o paciente em petição de miséria. E isso gerava uma dúvida crucial: seria possível evitar a sífilis, mas sem evitar o sexo?
A resposta foi dada pelo grande anatomista italiano Falópio (que descreveu, a propósito, as trompas de Falópio). Num trabalho publicado em 1564 — póstumo; ele morrera dois anos antes —, Falópio diz que os não-circuncisos podiam se proteger da infecção colocando um pedaço de pano sobre a glande e fixando-o com o prepúcio. Na verdade, uma manobra muito pouco prática e nada garantida. Contudo, é a Falópio que se atribui a descoberta do condom, embora uma lenda diga que os romanos já usavam, com o mesmo propósito, bexigas de bode.
A idéia pegou, mas na linha dos romanos, não de Falópio. Dois séculos depois, preservativos já estavam disponíveis, feitos de pele de peixe. O objetivo agora não era só evitar a sífilis, mas também a gravidez. Nas palavras do galante Casanova: “É preciso colocar o sexo ao abrigo de qualquer medo”. As camisinhas eram vendidas em bordéis e em alguns estabelecimentos comerciais, sendo especialmente recomendadas, segundo um anúncio da época, para “cavalheiros, embaixadores e capitães de navio viajando para o estrangeiro”. A camisinha era então um objeto sofisticado; os militares ingleses, por exemplo, usavam-nas decoradas com as cores de seu regimento. Mais tarde, o retrato da Rainha Vitória (que não era exatamente um tipo de beleza) apareceria nas caixinhas dos preservativos: homenagem à realeza ou um breve contra a luxúria? Nunca ficou esclarecido.
A camisinha era muito cara. Mas então a tecnologia veio em socorro dos aflitos amantes. Com a descoberta da vulcanização da borracha, em 1843-1844, tornou-se possível fabricar um condom mais barato e apropriado. A partir daí o uso se propagou. Os antibióticos, que foram um grande avanço na luta contra as doenças sexualmente transmissíveis, levaram também a um certo descaso com a prevenção — que voltou a ser valorizada com a corrente epidemia de Aids.
Mesmo assim ainda existem muitos obstáculos ao uso do condom. Um médico tailandês que encontrei num simpósio de saúde pública contou-me uma história muito ilustrativa. Para mostrar aos camponeses da região como usar o preservativo, ele colocava um no próprio polegar. Um dia veio ao posto de saúde um camponês furioso: ao contrário do que o médico dissera, sua esposa havia engravidado. O doutor perguntou como tinha usado o preservativo. No dedo, como o senhor mostrou, foi a resposta.
O nosso nível de informação é maior, mas mesmo assim, o condom ainda precisa ser mais difundido. Não é preciso chegar aos exageros como aquele que vi em uma camiseta: “Machão não usa camisinha; machão manda plastificar”. Mas é preciso, sim, lembrar que sexo seguro não é sexo amedrontado. Sexo seguro é, simplesmente, sexo informado.

Sexo orquestrado, Dom Eugênio Sales

Antes e durante o carnaval, ocorre uma intensa campanha, bem orquestrada, em favor do uso de preservativos. Promete relações sexuais sem perigo de contaminação pelo vírus da Aids. Com aplausos em nível internacional, o Brasil se apresenta hoje como um modelo a ser seguido na luta contra a propagação desse terrível mal. A tônica utilizada, através da mídia, é que se alcançou o dito ''sexo seguro''. Toda a campanha se concentra exclusivamente nesse método, isto é, no preservativo vulgarmente chamado ''camisinha''. Essa discriminação, preferindo-a a outros métodos, parece muito estranha, principalmente por estar em jogo a vida humana. Diante da gravidade da epidemia, é incompreensível que organismos destinados a preservar a saúde, em suas informações, omitam ou deixem em semi-obscuridade a abstinência sexual ou, ao menos, o parceiro único. Não nos esqueçamos de que a promiscuidade sexual é um dos fatores mais importantes na difusão desse vírus.
Felizmente, algo começa a mudar. Contudo, esses ventos ainda não chegaram efetivamente até nós. Toda uma mentalidade pró-liberdade irrestrita na prática do instinto sexual inibe a proclamação de outros meios capazes de impedir, com segurança, o contágio da Aids. O preservativo, chamado ''sexo seguro'', na verdade nem sempre o é. Todas as vezes que se rompe o látex, usado por alguém infectado, uma vida humana fica exposta. E o responsável por esse desastre escapa à punição.
Acabo de receber uma notícia que tem por título ''Notável mudança na política sobre Aids''. Vem de Washington, com data de 7 de janeiro último. Após 15 anos de intensa luta, o Senado de Nova Jersey aprovou uma lei que estabelece plano de promoção da abstinência sexual entre os alunos das escolas públicas, como ''a única maneira confiável'' de evitar a gravidez precoce e as enfermidades decorrentes de relações sexuais, principalmente a Aids ou Sida. Comentando o evento, disse John Tomicki, diretor executivo da Liga das Famílias da América: ''Praticar a abstinência é a melhor proteção contra a Sida e outras enfermidades de transmissão sexual''. A lei obriga a que qualquer livro ou vídeo, utilizado em classe, deva mostrar essa opção como a melhor. Alguns métodos de anticoncepção poderão ser mencionados, mas os professores deverão explicar bem os riscos que apresentam. A diretora de uma associação educativa de Nova Jersey afirmou que os materiais de ensino terão de ser substituídos ou reescritos, já que, atualmente, os colégios públicos ensinam a abstinência em oitavo ou 12° lugar, em ordem decrescente, quanto à eficácia. Recebi também diversas outras informações que justificam a esperança de uma alteração na propaganda que identifica o uso do preservativo com o sexo seguro.
A relevância deste título nos faz refletir: ''Evidência de fatores de risco, pelas falhas das camisinhas, entre os militares franceses estacionados no além-mar''. Tem origem nos Serviços de Medicina das Coletividades e no Instituto de Medicina Tropical, do Serviço de Saúde do Exército, Marselha, França. Esse Serviço Médico do Exército Francês vem distribuindo gratuitamente ''camisinhas'' ao pessoal de além-mar, desde 1989. Anos depois, constatam que as relações sexuais anais e o abuso do álcool são os principais fatores na falha dos preservativos. Os resultados desse estudo mostram que eles não dão uma proteção absoluta. A vigilância sanitária oficial deveria informar o público sobre os fatores de risco, devido às falhas das ''camisinhas''. Em uma publicação, vi uma foto de produto fabricado nos Estados Unidos, destinado às pessoas que têm alergia ao látex do preservativo comum. Como é confeccionado com tecido proveniente de víscera de carneiro, não impede o HIV. Traz a seguinte mensagem impressa: ''Este produto é elaborado para ajudar a prevenir a gravidez. Ele não protege contra a infecção do HIV (Aids) e outras doenças sexualmente transmissíveis''. Sem concordar com a destinação anunciada, reconheço a honestidade, declarando não impedir a propagação da Aids. Quantos teriam evitado a contaminação por uma doença ainda sem cura - mortal, portanto -, se não tivessem sido enganados! Uma campanha que apresenta o preservativo como estímulo ao sexo livre promove a epidemia e recebe os aplausos dos que advogam o direito à sexualidade sem restrições. Quem prefere assegurar a vida, mesmo não sendo cristão, pratica a abstinência sexual ou decide firmemente por um parceiro único e inume ao vírus. Quem viajaria de avião, se, ao entrar no aeroporto, uma faixa anunciasse que somente 87% dos passageiros chegariam ao destino com vida?
A Comissão Permanente do Episcopado Espanhol, em uma nota sobre o preservativo, faz considerações que nos obrigam à reflexão sobre o assunto. É um erro ocultar da população ser a permissividade sexual indiscriminada o maior fator de risco da Aids. Favorecendo de modo irresponsável esse procedimento, como se vem fazendo, através de iniciativas oficiais de informação, acaba-se por torná-lo um dos elementos que têm contribuído para que muitos considerem a promiscuidade sexual algo moderno e, em conseqüência, os responsáveis por tais campanhas têm aumentado os riscos de contrair-se a Aids.
O assunto aqui tratado interessa a milhares de pessoas. Evidentemente, não aos que já foram contagiados pelo HIV, pois se refere à prevenção e não à cura que, infelizmente, não existe ainda. Não me dirijo somente aos católicos, mas a todas as pessoas que necessitam de uma palavra segura, independentemente do credo religioso que professam. Essas também devem ser instruídas, para que evitem a pena de morte pelo vírus que ameaça a humanidade.
A proposta de um ''sexo seguro'' usando o preservativo fere a verdade. Mesmo os que não são cristãos também têm o direito de serem advertidos para a realidade. Por isso, vale para todos a norma do parceiro único, da fidelidade conjugal e jamais deixar-se ser objeto de uma propaganda que envolve uma inverdade. O preservativo apresentado como seguro - e não é - termina por fomentar a epidemia.



Dom Eugenio Sales, cardeal, é arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Farias, aqui o link para o áudio do texto abaixo, recitado pelo próprio Vinícius

http://www.4shared.com/file/33304525/a3fc2e14/09Mensagem__Poesia.html?s=1

Farias, o texto que lemos na aula

Mensagem à Poesia
Vinicius de Moraes

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrarMuitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso
reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem... – que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza
No amanhãQue sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso irNão posso ir
Não posso.
Mas não a traí.
Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz. Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-Ia mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.
Vinicius de Moraes, o verdadeiro poeta brasileiro, tenta resistir à poesia. O poema acima foi extraído do livro "Antologia Poética", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 160.