quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Namorado: Ter ou nao ter, é uma questão (Carlos Drummond de Andrade)

Quem nao tem namorado é alguém que tirou férias nao remuneradas de si
mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado
de verdade é muito raro. Necessita de adivinhaçao, de pele, de saliva,
lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.

Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixao é fácil.
Mas namorado, mesmo, é muito difícil.

Namorado nao precisa ser o mais bonito, mas aquele a quem se quer
proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase
desmaia pedindo proteçao. A proteçao dele nao precisa ser parruda,
decidida, ou bandoleira: basta um olhar de compreensao ou mesmo de
afliçao.

Quem nao tem namorado nao é quem nao tem um amor: é quem nao sabe o
gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um
envolvimento e dois amantes, mesmo assim pode nao ter namorado.

Nao tem namorado quem nao sabe o gosto da chuva, cinema sessao das duas,
medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Nao tem
namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar
sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria. Nao tem namorado quem faz
pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a
felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.

Nao tem namorado quem nao sabe o valor de maos dadas; de carinho
escondido na hora que passa o filme; de flor catada no muro e entregue
de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico
Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre a
meia rasgada; de ânsia de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô,
bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.

Nao tem namorado quem nao gosta de dormir agarrado, fazer sesta
abraçado, fazer compra junto. Nao tem namorado quem nao gosta de falar
do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro
dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Nao
tem namorado quem nao redescobre a criança própria e a do amado e sai
com ela para parques, fliperamas, beira d'água, show do Milton
Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical na Metro.

Nao tem namorado quem nao tem música secreta com ele, quem nao dedica
livros, quem nao recorta artigos, quem nao chateia com o fato de o seu
bem ser paquerado. Nao tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem
curtir; quem curte sem aprofundar. Nao tem namorado quem nunca sentiu o
gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou
meio-dia de sol em plena praia cheia de rivais. Nao tem namorado quem
ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de
obrigaçoes; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele. Nao tem
namorado quem confunde solidao com ficar sozinho. Nao tem namorado quem
nao fala sozinho, nao ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

Se você nao tem namorado porque nao descobriu que o amor é alegre e você
vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve,
aquela de chita e passeie de maos dadas com o ar.

Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricçoes
de esperança. De alma escovada e coraçao estouvado, saia do quintal de
si mesmo e descubra o próprio jardim.

Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua
janela.

Ponha intençoes de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de
fada. Ande como se o chao estivesse repleto de sons de flauta e do céu
descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante
a dizer frases sutis e palavras de galanteria.

Se você nao tem namorado é porque ainda nao enlouqueceu aquele pouquinho
necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.
Enlou-cresça.

A valsa

CASIMIRO DE ABREU

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco

Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas,..
- Eu vi!...
Calado,
Sozinho

Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues
Não mintas...
- Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

Todas as cartas de amor...

Fernando Pessoa
(Poesias de Álvaro de Campos)


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Para Viver Um Grande Amor

Vinicius de Moraes


Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.


terça-feira, 31 de agosto de 2010

História de um soneto - Artur azevedo

Antes de entrar definitivamente na vida prática, Ludgero Baptista, hoje um dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos - um, pelo menos - foi escrito com más tenções, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos, idade em que o homem não sabe medir bem as conseqüências dos seus atos... nem dos seus versos.

Havia naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetáculos.

Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a todos os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural filáucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas diligências, a fim de que os seus amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa situação mais positiva.

Para isso, recorreu à musa, que não abandona o poeta nessas emergências exóticas, e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os tempos, o privilégio de insultar as senhoras, sem que a moral pública os responsabilizasse por isso.

Eis aqui o soneto, que se intitulava:

SÚPLICA

Desde o dia feliz em que, pasmado,

Pela primeira vez te vi, senhora,

Um sentimento no meu peito mora

Feito de angústia e feito de pecado.


Não creias que ninguém houvesse amado

Tão loucamente como eu te amo agora,

Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora

Cavalheiresco tempo celebrado!


Para que finde o meu suplício airoso,

Ou me concede o mendigado beijo,

Este martírio transformado em gozo,,


Ou revela ao teu dono o meu desejo:

Talvez ele me faça venturoso,

Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!


Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L.B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos "novos" daquela época.

Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um número do periódico à "linda Laura", procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.

Não sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa à narrativa; creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.

O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis.

A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de réis, e aos trinta e sete principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir família.

Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no físico.

Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras.

Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.

Casaram-se.

Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas passado esse tempo, ele que estava às portas do semicentenário e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes...

Perdi o encanto - disse ele aos seus botões - tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegância que tinha na ocasião do nosso primeiro encontro... O nosso enlace não era, mas tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis...

Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse...

Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de sua mulher.

Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete.

- Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?

- Não sei - respondeu ela, e desatou a chorar.

- Por que choras?

- Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!...

- Abro-a eu! - disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos.

Ao ler o primeiro verso,

Desde o dia feliz em que, pasmado,

o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de "Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.

Ludgero deu uma gargalhada.

- De que te ris?... Que há que te faça rir? - perguntou Blandina.

- Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele, e sim meu!

- Teu?

- Sim! A coincidência é notável... Vais ver!

Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova Aurora, em que vinha estampada a sua "Súplica".

- Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!

- Tu fazias versos?

- Fazia-os, e ainda os farei, se quiser - tanto assim, que vou escrever outro soneto em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.

- Está dito!

A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.

No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:

- Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...

O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a:


RESPOSTA

Para satisfazer ao seu pedido,

Na parte da denúncia e não do beijo,

Revelei a meu dono o seu desejo.

Os versos entreguei a meu marido.


Este em vez de ficar enfurecido,

E de agarrar um ferro malfazejo,

Tomou a coisa á conta de gracejo,

E pôs-se a rir como um perdido!


Pois se e ele o autor do tal soneto!

O senhor copiou-o da Nova Aurora,

Estragando-lhe apenas um quarteto...


Ele, que a Musa já mandou embora,

Cede-lhe os versos (discrição prometo),

Mas não quer sociedade na senhora.


Blandina Baptista

Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.

Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente, encontrou o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...

O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.

Toc Toc Toc - Artur Azevedo

O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.

Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.

Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.

A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.

Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.

O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.

- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...

O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:

- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?

- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...

- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.

- Tu?... Apesar de...?

- Apesar de tudo!

- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!

- Por quê?

- Seria ridículo!

- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?

- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!

- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.

- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.

- Pois está dito!

No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:

"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."

A resposta não se fez esperar:

"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."

À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.

No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.

- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.

- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...

- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.

- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?

- Já lhe disse que sim.

- Bom; nesse caso, vou chamá-la.

E erguendo a voz:

- Idalina?

- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.

- Vem cá, minha filha!

Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!

Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.

- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.

- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...

- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.

Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:

- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?

- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!

Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.

O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:

- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...